terça-feira, 5 de fevereiro de 2008

Memórias de uma loja (II)

A empresa foi vendida há muitos anos. E as nossas vidas mudaram para sempre.
O Antunes reformou-se entretanto. A Paula, já pelos cinquenta e tais, casou, pela primeira vez, com um industrial do Norte, e pediu transferência para uma das lojas do Porto.

O substituto do Sr. Antunes diz ser gestor e chamar-se Dr. Silva, (sim, ele diz que se chama Dr. Silva) e é casado com a D. Idalette, uma gorda cheia de brincos, pulseiras e anéis, tudo a tilintar, que ele conseguiu pôr a trabalhar na secção de retrosaria, e que passa a vida a falar no “esposo”. O marido da D. Idalette, quando tirou o curso à noite, trabalhava numa loja de acessórios para automóveis. Mas agora, que é gestor, é gerente de uma data de lojas dum ramo completamente diferente. Mas isso não interessa: é gestor. Usa um bigode, daqueles tipo cortina, e já o vi de palito ao canto da boca, a chegar da hora de almoço. Fala com os funcionários como quem diz “Ó pá, alcança-me aí essas escovas limpa-pára-brisas muito jeitosas que chegaram ontem, para desenrascar aqui o freguês”, enquanto coça as partes baixas.

Não consigo entender. Com tanta modernice, tanto certificado de qualidade, como é que a administração pôs este fulano aqui?
Outro dia, parece que levou uma estalada de uma miúda da secção de lingerie, a quem deu um apalpão. Bem feito! Já toda a gente viu como ele olha para as miúdas.
Mas lá anda ele todo ufano, sempre a esfregar as mãos, a convocar reuniões, que raramente servem para alguma coisa, ou a dizer “vou-me ausentar um bocado, mas está tudo sobre controle”, ou “vou fazer um coffeezinho-break”.
E diz que faz muitas coisas, e que a empresa está a fazer muitas coisas, que ninguém sabe o que são. Mas o que vemos são as mesmas lojas, só que agora com funcionários que não se sentem respeitados nem felizes. E que não têm a quem respeitar.

Eu, que sou do tempo do Antunes, figura presente e simpática, que muitas vezes, no Natal ou nos saldos, ajudava na loja, atendendo os clientes, sempre eficiente e correcto, já não tenho muita paciência para estas coisas. Modernices…

Há pouco tempo só me faltavam três anos para a reforma, e agora, com a nova lei, vou sair daqui velha demais para poder estar com os meus netos como gostaria. Lá se vão as idas ao Jardim Zoológico, aos museus, sei lá. Se calhar nessa altura já nem estou bem para pegar no carro e ir com eles até Sintra ou à Ericeira passear. Deus nos dê saúde. O que é se há-de fazer?

A Paula foi substituída por uma lambisgóia género extraterrestre - com um corte de cabelo estranho, à punk, acho eu, madeixas em pé, aos bicos, que usa umas mini-saias do tamanho de cintos largos, sempre de barriga ao léu, e os papos, minha Nossa Senhora, aqueles papos de banha no lombo, sempre a ver-se… Fala de maneira afectadíssima para julgarmos que é “bem”, mas diz “prontos”, “fostes, pá?”, e outro dia disse-me “Depois dê-me fio-de-beque, se faz favor” - deu-me tanta vontade de rir, que nem fui capaz de lhe dizer que é feed-back que se diz, mas também não sei se valeria a pena. Estes badamecos agora têm a mania que sabem tudo…
A lambisgóia, a Vanessa, trata toda a gente por tu, mesmo os mais velhos. Coitada, nem deve ser má pessoa, mas é tão poucochinho! Não sabe nada de nada. Toda a gente goza com ela por isso, mesmo aqueles que não vêem motivo para criticar a maneira como fala. Não sabe falar com os clientes, claro. E fala com eles a mascar pastilha elástica. É completamente desadequada. Até já houve problemas por duas ou três vezes, mas veio de lá o Silva com o ar servil e estúpido que Deus lhe deu, a esfregar as mãos uma na outra, a tentar acalmar as clientes, que, à boa maneira portuguesa, acabaram por baixar armas e ir-se embora, depois de ouvirem enormidades como “A Senhora seja compreensível, a moça é muito nova, mas é a melhor chefe de loja que já tivemos”, ou “Tenha paciência, a moça não fez por mal”.
O Dr. Silva acha a Vanessa fantástica. Toda a gente já percebeu, e a miudagem, os empregados novinhos, aproveitam-se disso. Fazem o que querem e já começam a desleixar-se. Usam as fardas, que até foram desenhadas por um daqueles estilistas da moda, e são giras, como querem: curtas demais, apertadas demais, como a própria Vanessa. Já todos mastigam chiclete a toda a hora, e falam com os clientes de qualquer maneira. Enfim, não há respeito nenhum. E ninguém sabe o suficiente nem para ensinar nem para exigir. Por isso, os nossos clientes mais antigos estão a deixar de aparecer nas secções onde já não empregados da velha guarda como eu.
Há pouco tempo só me faltavam três anos para a reforma, e agora, com a nova lei, vou sair daqui velha demais para poder estar com os meus netos como gostaria. Lá se vão as idas ao Jardim Zoológico, aos museus, sei lá. Se calhar, nessa altura já nem estou bem para pegar no carro e ir com eles até Sintra ou à Ericeira passear. Mas o que é que se há-de fazer? Deus nos dê saúde!

5 comentários:

ana v. disse...

Cá p'ra mim tinhas um fraquinho pelo Antunes... confessa lá, que a gente promete ser compreensível!

Sem brincadeiras: Bela história, prima. E... muito libertadora, não?
;)
Bjs

MariaV disse...

Olha lá, ó miúda, eu sou velha mas não tanto. A narradora está quase na reforma e a mim ainda me falta um "porradão" de tempo. Hèlas! Vocês bem querem uma amante para o Antunes... On verra.
Ai que chique que eu estou, a falar franciú!
Bjs

ana v. disse...

A narradora "estava" quase na reforma, coitada. Mas agora faltam-lhe quarenta e três anos para lá chegar... se chegar, claro. Por isso é melhor casá-la depressa com o Antunes e levá-los a passear à Ericeira. Vá lá, queremos casório. E um strip do Antunes na noite de núpcias com todos os pormenores: desde as ligas das meias (que usava, claro) até à camisola interior de buraquinhos e manga "à cava". Boa?

Sofia K. disse...

LOL...
E eu que ainda fiquei a pensar... não me tinha dado conta que ela era tão velha...

beijinhos

MariaV disse...

Ah, pois é... É muuuuuuuito mais velha do que eu, e do que tu, então nem se fala - acho que podia ser tua avó!
Bjs