terça-feira, 22 de janeiro de 2008

Memórias de uma loja

Quando era miúda, adorava ir com a minha mãe às compras. Lembro-me de uma loja grande, com muitos empregados, onde íamos comprar desde meias a pijamas, desde fardas para as criadas a toalhas turcas. Era uma loja grande, com muitos empregados e com um nome que me fascinava: Princesa das Meias. Talvez por mencionar uma princesa. Como toda a gente sabe, as miúdas têm a mania das princesas. E embora não fosse uma princesa com nome de gente como nas histórias, nem fosse princesa das fadas ou de outra coisa qualquer mais apelativa, eu achava que aquele nome – Princesa das Meias – tinha um encanto especial.

Nas minhas brincadeiras de criança, quando brincava às lojas, fingia que era uma daquelas empregadas. Fingia, talvez, que era eu a própria “princesa das meias”. Não imaginava sequer que, muitos anos depois, quando essa loja já deixara de existir para dar lugar a um banco ou a uma loja de chineses, viria a trabalhar numa loja ainda maior e com muito mais empregados.

Onde continuo hoje, apesar de tudo.

Esta é uma loja com um nome diferente, que não vende meias nem turcos, e que não tem nome de princesa. Não digo o nome, por causa das coisas. Mas para que vejam que não é uma chafarica qualquer, posso dizer que tem sucursais por todo o lado, vende quase de tudo, e o negócio é de muitos milhões. Nem sei ao certo quantos empregados tem. É uma grande empresa.

Quando lá entrei, fui trabalhar para uma das lojas, uma das grandes. Trabalho agora noutra, e, ao longo destes anos todos, já estive em algumas.
Fui nomeada “Vendedora do Mês”, muitas vezes, nas várias lojas.

Mas isso foi antes.
Não no tempo em que os animais falavam, que eu não sou assim tão velha.
Mas no tempo em que as pessoas tinham valores, e os faziam presentes na vida da loja. Valores de respeito, solidariedade, ou, no mínimo, humanidade. As pessoas, empregados e chefes, respeitavam-se e eram amáveis. Era fácil amar aquela gente. Porque éramos amáveis e ser amável é isso mesmo: tratar os outros com amor, o que os leva, quase sempre, a que nos tratem da mesma forma.

Por isso era bom e era fácil trabalhar naquela empresa. Mesmo quando tínhamos que trocar as colecções de Verão para as de Inverno e ficávamos a trabalhar de noite, a abrir caixotes, a desembalar tudo, a arrumar a roupa nas prateleiras e a pendurar vestidos, casacos e fatos nos charriots. Muitas vezes, nessas alturas, nós “as miúdas”, como nos chamavam o Sr. Antunes e a Paula, o gerente e a chefe de loja, estávamos tão cansadas! E mesmo assim, porque nos sentíamos bem, de tudo fazíamos uma festa. Éramos tão novas!
Tínhamos ataques de riso, sempre que o braço direito daquele manequim se desconjuntava e depois era um inferno para o pôr de volta no sítio e enfiar a manga. E os chefes também achavam graça. E riam-se connosco, e era bom trabalhar assim.

Uma vez, uma empregada mais antiga que lá havia disse que o Sr. Antunes perdera um filho quase da nossa idade. Por isso era tão macambúzio. Mas connosco, os mais novos (sim, porque também havia rapazes, nas outras secções), ele ria-se muitas vezes. Achava graça à nossa juventude, acho eu. Ou lembrávamos-lhe o filho, e ele tinha ternura por gente nova.
O Sr. Antunes estava na empresa há muitos anos, fizera escola por ali. Ensinara, com o seu jeito meio cerimonioso e discreto, muitas gerações de novos empregados. E não havia ninguém que não o respeitasse e não gostasse dele.
Gozávamos com o capachinho – usava capachinho, coitado - mas ele nunca mostrou perceber, e, apesar do capachinho, e de ele falar da mulher, que trabalhara lá antes de abrir um cabeleireiro no bairro onde viviam, dizendo “a minha esposa”, era uma pessoa respeitável e respeitada. Porque sabia trabalhar, por nos ensinava a trabalhar, porque avaliava o nosso trabalho, porque sabia avaliar-nos e nos ajudava a melhorar, e porque era irrepreensivelmente sério. Era uma boa pessoa. Ponto final.

6 comentários:

Capitão-Mor disse...

Boa estreia!

Anónimo disse...

Obrigada, Capitão. Estou neste momento a fazer-lhe continência. Espero que volte mais vezes, para abrilhantar este estabelecimento. Afinal, uma farda, de preferência de gala, dá sempre imponência!

ana v. disse...

Ponto final? E o que é que aconteceu ao sr. Antunes, prima? Queremos mais aventuras, de preferência picantes. Sim, porque o sr. Antunes tinha uma amante... não tinha?

Anónimo disse...

Cusca! Espera pelo próximo episódio. Já estás como o PL que já cá veio pedir histórias picantes.

Não vais acreditar, mas o resto da nossa já famosíssima carbonara de ontem, hoje estava bem mais comível. Juro.

Viste que já tenho uma farda no blog? Não, não fardei o pessoal, ainda. Foi o Capitão-Mor que já cá veio.

Beijinhos

tcl disse...

boa estreia sim senhora! também fico à espera do resto da história dessa loja...

Sofia K. disse...

Numa palavra: gostei muito! LOl só podia ter capachinho o Sr. Antunes! Têm sempre...

Fico à espera dos próximos capítulos!