sábado, 8 de março de 2008

O cheiro do pão

Pão acabadinho de cozer... Um cheirinho delicioso. Pão acabadinho de chegar. Entrávamos na cozinha de manhã e sabíamos que o pão já lá estava à nossa espera.

Cheirava a pão... e a cavalo. Quem trazia o pão, de manhãzinha, para casa da avó, era o Sebastião. Por incrível que pareça hoje em dia, o Sebastião vivia na cocheira, embora a sua mulher e filhos morassem logo ali, ao virar de uma ou duas esquinas. Na altura, por incrível que pareça, era assim, e não me lembro de nessa altura alguma vez ter questionado isso. Ainda me lembro de ir ver os cavalos e olhar para o catre em que ele costumava dormir, coberto com uma manta lobeira, daquelas de papa, às riscas coloridas, que associamos aos campinos de antigamente.

O Sebastião orgulhava-se de nunca ter tomado banho e, quando uma vez o convenceram a ir à Nazaré numa excursão, ia-se sentindo mal ao ver tanta água de uma só vez.


Manhãzinha cedo, os cavalos davam por terminada a noite e começavam a bater com os cascos no chão e acordavam o seu companheiro de quarto, o Sebastião. Não sei se primeiro tratava dos cavalos ou ia à padaria buscar o pão para casa da sua "Senhora" num saco de pano, daqueles que hoje já só vemos na mão de alguma velhinha às compras.

Só sei que, quando eu acordava em casa da avó, na cozinha já cheirava sempre a cavalo. Por mais que nos choquemos hoje pelo facto de o homem dormir com os cavalos, porque era assim, e de se entregar a tarefa de lidar com o nosso pão de cada dia a alguém que sabíamos não ter as mínimas noções de higiene, o pão era maravilhoso, com aquele cheiro que lhe contagiava o sabor.

Há anos, numa noite à lareira depois de um pôr-do-sol regado a Alvarinho, e de um jantar caprichado, regado com um óptimo tinto, em que contávamos recordações de quando éramos crianças, esta história valeu-me uma "fúria" contra quem teve a lata de gozar comigo. Por isso não gozem agora...

E se alguém souber onde posso encontrar pão com aquele sabor, por favor avise-me. Não quero saber se escapou ao controlo sanitário da ASAE, e vou a correr comprar. Pode ser que consiga reaver uma sensação - pueril, talvez - da minha infância.

9 comentários:

Dona Betã disse...

Não vou rir nem achar que é lamechice. Sei bem o que isso é.
Os cheiros e sabores da nossa infância ficam-nos para toda a vida.
Sou de uma terra onde havia muitas fábricas de conserva de atum. Em Agosto ou Setembro (sei que era no Verão), as fábricas coziam o atum para as conservas. Toda a terra ficava impregnada daquele cheiro que, embora um pouco enjoativo, era-nos familiar e muito nosso.
Hoje, quando abro uma lata de atum em conserva, vem-me à memória a minha infância. Tal como com o cheiro a pinheiros, o sabor e cheiro do leite fervido, o sabor das gemadas, o cheiro a sabão azul e branco.
Como eu te compreendo, amiga.
Bom domingo

Ah, já me esquecia: podes levar o que te apetecer. A casa é tua.

ana v. disse...

Ah, o Sebastião!! Este texto - lindo e ternurento - deixou-me a babar também, com as mesmas lembranças. Até me deu uma ideia: o Sebastião vai parar aos Pasteis de Nada, onde pertence e onde já devia estar. Não passa de amanhã.
Beijos

Sofia K. disse...

Cheiros da nossa vida. O cheiro da casa da minha avó emprestada, da marmelada da minha avó verdadeira, da cozinha dela de manhã quando chego e já há o pão com manteiga e açúcar (só para mim), o cheiro dos cozinhados da minha mãe, o cheiro da minha casa (só soube como era quando estive uns tempos sem lá ir), o cheiro da manhã de Inverno no Baleal, o cheiro de Peniche e da fábrica das rações na Lourinhã, da época dos campos com couves e das laranjas no laranjal... o cheiro da Primavera em flor, do martini ao pôr do sol, do cabelo acabado de lavar... Uma ternura o teu texto!

beijos

p.s. Olha a prima vai ressuscitar o pastéis... já não era sem tempo!

Maria Oliveira disse...

Os cheiros, os sabores da nossa infância, são os que ficam gravados mais fundo na nossa memória!

Parabéns pelo blog.

MariaV disse...

Vejo que as recordações que nos são queridas, quando partilhadas, fazem com que os outros - vocês - vão buscar também as vossas e as partilhem, com a ternura que isso implica.
O cheiro do atum, do JG, fez-me lembrar outro cheiro, que me acompanhou durante quase 20 anos, quando morava ao pé de uma fábrica de chocolates. (Obrigada, vou lá buscar "aquilo" que pedi).
Eu sabia que nas memórias da Ana também havia lugar para esta história. Nas da Mad talvez já não. São as prerrogativas de ser mais nova...
A Sofia, aproveitou para partilhar uma data de cheiros...
E a Paula, que acho que não sei quem é, e até me deu os parabéns pelo blog que eu agradeço sensibilizada, fica desde já convidada a voltar e a comentar sempre que lhe apetecer.

Beijos a todos

Anónimo disse...

R., estou a ficar com água na boca só de lembrar do cheiro do pão fresco na mercearia dos meus avós.
De manhãzinha, ia ao cesto, tirava um paposeco e lá ia eu para a cozinha tomar o pequeno-almoço com o meu irmão que comia aos três e quatro, secos, sem nada...
E as velhotas de saco de pano na mão à espera e a dar dois dedos de conversa.
Quando encontrar desse pão, avise-me.
Bjs
PV

Mad disse...

Do Sebastião não me lembro, mas o Capão, lá de casa, era igualzinho... E tb dormia com os cavalos e dizia que o banho fazia mal à saúde.

MariaV disse...

PV,
mais uma visita sua, que bom! Eu aviso,mas olhe que o "meu" pão sabia mesmo um bocadinho a cavalo!
Bjs

Mad,
pois é, és mesmo mais nova! Eu lembro-me muito bem dos dois. O Capão era mais pequeno e tinha um bocadinho cara de fuínha, não era?
Vai ver o mail que mandei à Ana e a ti. Estou farta de me rir a imaginar "cenas"!
Bjs

tcl disse...

Um cheiro da minha infância: um tabuleiro cheio de maçãs camoesas que a minha avó ia descascando e eu sentada nos degrauzinhos da escada a levar com um raio de sol que entrava pelos vidros da porta da rua